Sobre o homem que parou de piscar
Um gesto simples virou revolução. E terminou com um olho só.
Ele era um homem absolutamente comum. Mas comum mesmo.
Trabalhava com tecnologia, uma daquelas profissões modernas que ninguém sabe explicar direito.
Não era infeliz, nem feliz. Era só… funcional. Mas, curiosamente, reclamava com excelência.
Se tinha algo que não lhe faltava, além da monotonia, era força de vontade. Só tinha um problema: não sabia como mudar. Era simplista demais. E por ser simplista, nunca teve ideia do que fazer com a própria vida. O pai dizia, quando ele era pequeno, que ele era a criança menos criativa do mundo. E ele acreditava, mesmo depois de adulto.
Na noite anterior, deixou o arroz queimar de novo. O alarme não tocou. Nem ele.
“Preciso mudar alguma coisa”, disse.
E foi dormir com a decisão de que algo precisava sair do lugar.
Na terça-feira seguinte, enquanto escovava os dentes diante do espelho, decidiu que não piscaria mais. Disse que era uma questão de tempo, controle e dignidade.
Se cachorro não pisca, por que eu deveria?, pensou.
Nunca checou se era verdade. Apenas gostou da frase.
E seguiu com ela.
A partir daquele dia, só fechava os olhos para dormir. Nas primeiras semanas, ninguém notou. No segundo mês, começaram os comentários no trabalho.
Por que você não pisca?, perguntavam.
Porque eu quis mudar. Simples assim, ele respondia.
E arrematava:
Não vou piscar nunca mais.
O estranhamento virou curiosidade. O homem que não piscava virou pauta em jornais e podcasts. Influenciadores tentaram entrevistá-lo. Levaram-no a oftalmologistas, neurologistas e gurus do autoconhecimento. Ninguém conseguia convencê-lo a piscar. Nem uma mísera piscadela.
A insistência cansou.
E quando todos desistiram de fazê-lo voltar atrás, veio a transformação: de esquisito a exemplo.
A sociedade trocou o riso pela reverência.
Diziam que ele era símbolo de disciplina.
Um coach da vontade.
Um homem resiliente.
Em três meses, deixou o emprego.
Subiu aos palcos.
Abriu um curso online chamado “Como não piscar e mudar sua vida”.
Ganhou seguidores, contratos, dinheiro.
Muitos dinheiros.
Mas ele não entendia o porquê.
“Só queria mudar a minha vida”, repetia.
Até que apareceram os opositores. Médicos, políticos, reacionários, influencers… todos o acusando de ser o responsável pelo aumento de casos de problemas oftalmológicos. O Congresso entrou em cena. Criaram um projeto de lei: ele teria que piscar. Por lei.
Nunca obriguei ninguém a me imitar, tentou se defender nas redes.
Mas o tiro saiu pela culatra.
Perdeu apoio, ganhou mais haters.
Quando o projeto foi aprovado, a decisão era clara: ele teria que encerrar suas atividades públicas e… piscar.
Marcaram uma coletiva para o grande momento.
Câmeras, holofotes, transmissão ao vivo.
A maior piscadela da história, diziam.
Talvez mais comentada que a piscada de Humphrey Bogart em Casablanca.
Ele chegou sério.
Cansado.
Derrotado.
Mas ainda fiel à própria causa.
E então, piscou.
Mas só com um olho.
Em protesto
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