O homem que atendeu um trote de 1997
Uma crônica sobre o passado que liga de madrugada, com piadas ruins e verdades difíceis de ouvir
Era só mais uma ligação esquisita no meio da madrugada. Mas quando ele atendeu, escutou a si mesmo com 11 anos dizendo:
“Alô, sua geladeira tá gelada? Então é melhor colocar um casaco nela!!”
A princípio, meio sonolento e confuso achou que fosse algum golpe. Lembrava que adorava essa piada quando era menino, achava genial. Mas como seria um golpe? Ninguém sabia dos seus trotes, morria de medo das reações da avó e mãe. Mas como poderia ser ele mesmo? Isso tinha quase 30 anos, era época dos telefones fixos ainda. Achou que era um sonho e voltou a dormir.
Acordou jurando que era um sonho engraçado, mas enquanto passava seu café uma nova ligação. Novamente sua voz de criança falando com ele e com um outro trote. Ficou abismado. Não entendia como isso poderia estar acontecendo.
Durante o dia, as ligações continuaram. Sempre ele mesmo, aos 11 anos, em versões diferentes, com trotes engraçadinhos ou misteriosos.
Até o dia em que um recado veio com instruções .
“Se você quiser que eu pare, diga a senha secreta: tamagotchi com febre.”
Ele ficou paralisado. Porque tamagotchi com febre era algo que ele dizia para tudo quando era criança. Um código dele com… ele mesmo. Nem lembrava mais disso. Usava para escapar das broncas, encerrar brincadeiras, pedir tempo no futebol. Como poderia alguém saber?
Decidiu não atender mais. Bloqueou o número. Desligou o telefone fixo (que havia reinstalado só por saudade do barulho). Mas as ligações passaram a vir de outros aparelhos. Do interfone. Do micro-ondas. Um dia, o despertador tocou e era a voz dele dizendo:
“Hora de acordar, velhinho! Sua geladeira continua gelada?”
A realidade parecia dobrar, igual folha de caderno quando a gente faz aviãozinho. Até que ele percebeu: as ligações vinham sempre na mesma ordem que ele acreditava de tê-las feito quando criança. E isso queria dizer algo assustador:
O último trote seria aquele que ele nunca teve coragem de fazer.
O mais ousado, o mais sem sentido, aquele que ele rabiscou num papel de pão, mas nunca teve coragem de discar:
“Boa noite. Aqui é da linha direta do futuro. Precisamos te avisar que você vai crescer. E vai doer um pouco.”
E foi exatamente essa a ligação que ele recebeu.
Ficou em silêncio, ouvindo sua própria voz infantil dizendo o que ele mesmo nunca teve coragem de escutar.
Desligou. Olhou pra geladeira. Sorriu. E pela primeira vez em muito tempo, sentiu vontade de colocar um casaco nela.